Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021.
Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.
“As armas e os barões assinalados,
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram inda além da Taprobana”
Até aí tudo bem, ao contrário dos barões assinalados, ainda estamos em mares frequentemente navegados por qualquer um que tenha prestado vestibular no Brasil. Desta vez, porém, minha jornada é voluntária. Embarco com Vasco da Gama e o resto da tripulação sem a preocupação de dobrar o Cabo da Fuvest para encontrar a rota da USP ou algo que o valha. A viagem é um fim em si mesmo. Navegar é preciso, viver não é preciso, aquela coisa toda.
“Em| pe|ri|gos| e| gue|rras| es|for|ça|dos
Mais| do| que| pro|me|ti|a a| for|ça hu|ma|na,
E en|tre| gen|te| re|mo|ta e|di|fi|ca|ram
No|vo| Rei|no|, que| tan|to| su|bli|ma|ram;”
Em algum remoto lugar da minha memória, muito além da Taprobana (vulgo Ceilão, vulgo Sri Lanka), ecoa uma aula solitária de português: versos decassílabos (dez sílabas poéticas por verso), oito versos por estrofe seguindo o padrão de rimas ABABABCC – oitava camoniana, para os íntimos. 1.102 oitavas divididas em 10 cantos, 12 anos dedicados à promoção das glórias da pequena notável nação portuguesa. Sinto até um arrepio só de pensar no trabalho desgraçado que isso deve ter dado, ainda mais ao lembrar que Camões tinha um olho a menos, lembrancinha de uma batalha no Norte da África da qual participou e que lhe rendeu o carinhoso apelido de “Cara-sem-olhos”. Não à toa, quando o navio no qual o gajo navegava pela foz do rio Mekong, na China, afundou, ele escolheu salvar o manuscrito do poema ao invés da amante que ele encontrara lá pelas bandas do Sol nascente. Diz a lenda que ele nadou para fora dos destroços da embarcação com o livro ainda inédito erguido em um braço, acima da linha da água, e xingando o capitão: “ó, Manoel, não te disse que o espaço era muito apertado pra fazeres a baliza!”.
Conforme o poeta se prepara para narrar as aventuras e desventuras de Vasco da Gama à caminho das Índias (Are Baba!); faz pouco caso da Odisseia e da Eneida (marrento demais ele); pede inspiração às musas do rio Tejo (santo de casa às vezes faz milagre, aparentemente); e solta alguns comentários sobre os povos árabes que não envelheceram muito bem (eles arrancaram um olho dele, afinal! – sem contar as frequentes guerras dos lusitanos com os mouros na época), aguardo a cada novo verso o inevitável momento em que o poema irá se tornar maçante e incompreensível.
Mas verso segue verso, oitava segue oitava e este momento não chega. No lugar dele, chega um acalorado debate no qual os deuses romanos definem a sorte da esquadra de Vasco da Gama. Baco, aquele pinguço, opõe-se à empreitada, receoso de que os portugueses diminuam sua influência no Oriente, tido na mitologia greco-romana como um lugar bacana (Baco, bacana… me desculpem). Mas o que pode o reles deus dos birinaites contra a deusa do amor? Vênus, que enxerga na língua portuguesa a continuidade do latim e, por extensão, do império Romano (muito elegante, Camões, muito elegante), torna-se a protetora dos putinhos e convence o resto do Olimpo a ignorar as bravatas do divino cachaceiro. No lugar do momento em que a leitura se torna chata, chego ao final do Canto I e a uma conclusão assustadora: ao contrário do que sempre acreditei, de tudo o que me levaram a crer, “Os Lusíadas” é um baita livro gostoso de se ler.
Quando, talvez motivado pelo confronto diário com a finitude humana ocasionado pela pandemia, decidi subitamente encarar a obra fundante da língua portuguesa, esperava uma experiência enriquecedora mas não exatamente agradável; esperava chegar ao final do décimo canto sem entender grande parte do que eu lera, mas orgulhoso da minha persistência; esperava, sendo bem sincero, que o maior prazer que eu tiraria disso tudo seria poder olhar no espelho e dizer “parabéns, cara, você leu ‘Os Lusíadas’ (e talvez você devesse parar de falar com o seu próprio reflexo)” esperava, enfim, muitas coisas, mas não uma narrativa envolvente, com passagens emocionantes que me impediam de largar o livro e episódios sangrentos dignos de Game of Thrones (alô, HBO!). Agora, toda vez que escovo os dentes, lembro-me com um arrepio do trecho em que o Cara-sem-olhos narra com detalhes grotescos os efeitos do escorbuto nas gengivas dos marinheiros:
“Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assim cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.”
Curiosamente, tenho tomado mais suco de laranja nos últimos meses.
No Canto III, exortado pelo rei de Melinde (atual Quênia), que lhes deu abrigo seguro depois de a esquadra quase cair em uma das ciladas de Baco, Vasco da Gama limpa a garganta, aquece as cordas vocais e assume a tarefa homérica – digo, camoniana – de recontar de forma quase enciclopédica toda a história de Portugal até então. “Vai começar a aporrinhação”, lamentei. Ledo engano. Camões não só mantém a peteca no ar como o faz de modo impecável. História não era interessante assim desde “Alienígenas do Passado”, aquela famigerada série do History Channel que é mais sobre aliens do que sobre história. Para narrar a Batalha de Ourique, conflito contra os mouros cuja vitória levou Afonso Henriques a se autoproclamar o primeiro rei de Portugal, o autor arregaça as mangas e molha a pena em sangue ao invés de tinta:
“Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando;
Correm rios de sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde,
Tornado carmesi, de branco e verde”
[ou seja, rolou tanto sangue que os campos e as flores foram tingidos de vermelho]
Sinto-me enganado. Na escola, a despeito dos esforços isolados de um ou outro professor, estudamos “Os Lusíadas” e outros livros clássicos como peças de museu, de valor exclusivamente histórico, jamais literário. Pode haver uma questão de maturidade aí no meio, mas tenho certeza de que meu eu adolescente iria adoraria ler o trecho do Canto VI em que Vênus convoca um séquito de ninfas para seduzir e acalmar os ventos instados por Baco a afundar a esquadra portuguesa. Não que com isso eu esteja negando as barreiras de acesso impostas pela linguagem, pela construção sintática e, sobretudo, pelas várias e várias referências históricas, geográficas e mitológicas fartamente utilizadas por Camões (o gajo é muito culto, fazer o quê?). Eu próprio ensaiei uma primeira incursão ao poema alguns anos atrás, mas ela naufragou ainda no primeiro Canto – à época os deuses não aprovaram a viagem, parece. O ponto é que ninguém nunca me disse que se tratava de uma leitura factível para mim, que eu não precisaria fazer uma faculdade de letras para dar conta do poema. Com alguma preparação e uma edição caprichada, recheada de boas notas de rodapé, consegui navegar (desculpem o abuso de metáforas marítimas, estou empolgado) pela epopeia sem grandes percalços, e tenho plena consciência de que, a despeito do que minha mãe diz, eu não sou um jovem tão especial assim. Se eu consegui, e gostei, tudo leva a crer que você também conseguirá, e gostará – se todo o resto der errado, antevejo uma brilhante carreira de coach para mim.
Depois de – alerta de spoiler – enfim chegarem à Índia, darem um salve pro soberano local e fugirem de uma derradeira sabotagem de Baco (que neste ponto já parece um vilão de desenho animado de tantos fracassos que acumula ao longo do poema), os portugas finalmente tomam o rumo de casa. Ao contrário da viagem de ida, quando quase afundou a esquadra, o Gigante Adamastor (sinistra personificação dos perigos do Cabo das Boa Esperança) desta vez não ameaça soprar e bufar até afundar os navios, que chegam à costa oeste da África sem novos percalços. Antes de finalmente atracarem na ocidental praia lusitana mais uma vez, Vênus prepara um belo presente de boas-vindas aos “segundos Argonautas”, como os chama Camões em dado momento: uma orgia. Sim, uma orgia. Não se trata de um erro de redação e você não precisa aumentar o grau dos seus óculos, leitor. O Canto IX do livro que deu origem ao vernáculo como o conhecemos hoje consiste fundamentalmente em uma tremenda suruba numa ilha (apropriadamente apelidada de Ilha dos Amores) entre ninfas arregimentadas pela deusa do amor e os marinheiros que aparentemente não estavam tão cansados assim da viagem:
“Oh, que famintos beijos na floresta!
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,”
Para as recalcadas e os invejosos que acham isso uma sem-vergonhice, Camões – ele próprio um sujeito bem vivido, segundo os relatos que chegaram até nós – conclui a oitava acima iniciada com um recado:
“Melhor é experimentar do que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.”
Depois de uma merecido descanso, no décimo e último Canto do poema, Tétis, esposa do titã Oceano com quem Vasco da Gama se amanceba em um palácio de cristal e de ouro puro (o resto da galera não se incomodou em ficar ao relento, “pelas sombras, entre flores”), apresenta aos lusitanos a segunda – e menos interessante, reconheçamos – recompensa que os aguardava na ilha: a famosa máquina do mundo (que inclusive é o nome de um dos grandes poemas de Drummond, cuja estrutura, por sua vez, é inspirada na Divina Comédia, de Dante, resultando no maior crossover da história. Chupa, Marvel). A Máquina do Mundo é uma espécie de modelo vivo do universo, uma maquete perfeita da cosmovisão hegemônica à época em que o épico foi escrito. Ao vê-la, os portugueses têm um vislumbre não apenas da geografia do mundo como também do futuro glorioso de sua jovem nação. Satisfeitos, os gajos prometem às ninfas telefonarem assim que chegarem em casa, sobem pelo Tejo e retornam à Terrinha, onde são recebidos pelo rei e presumidamente se empanturram de bacalhau e de vinho até não poderem mais. Camões, porém, conclui o épico com uma nota de pesar, lamentando a ignorância, a cobiça e a corrupção na qual via imersa sua pátria querida, cenário muito diferente do Brasil de 2021 e daquele de quando Camões, 12 anos antes, começara a escrever o poema – provavelmente o fato de a família de Vasco da Gama não ter dado nenhuma moral (i.e., grana) para o trabalho também não deve ter ajudado muito. Como cabe a um artista de renome, o poeta morreu pobre e miserável, mas aquilo que havia de mortal nele pode ser reverenciado no Mosteiro dos Jerônimos, em Belém. A localização acaba por ofuscar o autor, uma vez que fica ao lado do local responsável por aquela que é indiscutivelmente a maior contribuição de Portugal ao mundo: a confeitaria Pastéis de Belém, berço da homônima iguaria cujo sabor nem Camões se atreveria a tentar traduzir em palavras.
P.S: Seria indecoroso encerrar esta singela homenagem sem reconhecer que, em nome da fluidez do texto, faltei com a verdade quando disse em algum lugar ali para cima que não encontrei nenhum obstáculo intransponível na leitura de “Os Lusíadas”. Trata-se de uma mentira deslavada. A despeito de todo o meu esforço, do meu engenho e da minha arte, apesar de ler e reler trechos do poema, ainda não consigo dizer qual é a minha parte favorita. Não que isso seja um problema. Afinal, assim como os barões assinalados na Ilha do Amor, tenho certeza de que em breve vou querer um repeteco.